Umbanda, do kimbundu, significa “arte ou maneira de encantar, curar”

Lucena Fiorotti
21 min readSep 7, 2020

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Quero agradecer a Pai Guilherme Watanabe, Seu Caboclo Urubatão da Guia e todas e todos colegas das aulas sobre “umbanda antes de Zélio”. Esse texto é um exercício de síntese e um esforço contra as histórias oficiais. A trajetória de momentos históricos aqui exposta é quase que totalmente baseada nas pesquisas do historiador Guilherme Watanabe, portanto não é uma pesquisa minha mas uma divulgação de informações importantes para o Povo de Umbanda sobrecarregada pela minha escrita, pela maneira como tudo me afetou e com algumas citações achadas em estudos meus para corroborar os argumentos. É um ânimo para que possa servir para outros assim como serviu para mim. Axé.

Como praticante de umbanda no século XXI, uma história de origem da religião me foi contada. Uma história que envolve uma casa kardecista, um grito por justiça e um nome muçulmano.

A famosa narrativa de Zélio Fernandino de Morais que devido a problemas de saúde e comportamento foi levado à Federação Espírita de Niterói ao dia 15 de novembro de 1908 onde manifestou o Caboclo das Sete Encruzilhadas e que ao ser convidado a se retirar da mesa por ser índio, e portanto primitivo, teria a entidade dito que criaria um novo culto onde “pretos e índios poderão dar sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou” (Simas 2018) é exaustivamente contada nos terreiros. Diz ainda como complemento que o nome “Umbanda” é uma corruptela de “Alabanda” porque Pai Zélio gostaria de homenagear uma das suas entidades de frente, Orixá Mallet, que era um malaio muçulmano e por isso o nome teria “Alláh” em sua composição¹. Existe também a versão que o próprio Seu Sete Encruzilhadas no dia 16, seguinte à manifestação na Federação de Niterói, teria dito que o nome do culto seria Alabanda. De toda forma, para a história oficial, na boca do povo Alabanda virou Umbanda.

Há também outras versões sobre a origem do nome. Na tradição originada do Caboclo Mirim, de Benjamin Figueiredo, “Aumbandhã” seria o correto e oriundo dos povos do místico e antigo continente da Lemúria que, segundo a narrativa dessa corrente, foi um continente onde se viviam pessoas com alto conhecimento magístico e intelectual porém devido ao mau uso dessa capacidade esses seres caíram e tiveram de galgar sua evolução espiritual. Os espíritos de Umbanda seriam então antigos moradores de Lemúria que baixam nos terreiros com alto conhecimento mágico e alta moralidade. A tradição de umbanda esotérica, de Matta e Silva e Rivas Neto, envereda por um caminho parecido da Seara Mirim e as conceituações em volta dessas duas tradições, que procuram respaldo também no ocultismo, vão dizer ainda que “Aumbandhã” vem do sânscrito ou do adâmico (Rivas Neto 1989: 94).

É perceptível nas histórias oficiais, essas que estão nos manuais de umbanda, que é evitada a relação direta com uma herança afrodiaspórica. No caso de Zélio, diz que o culto originou-se do brado de um caboclo por igualdade e que caberia a ele e seu médium estabelecer um culto em que todos e todas pudessem falar. Um culto, é importante dizer, espírita onde seria lícita a manifestação de todo tipo de espírito. Vale ainda dizer que a autoridade de Seu Sete Encruzilhadas advém não pelo fato de ele ser um caboclo, um indígena nesse caso, mas por ter sido, segundo essa tradição, um padre jesuíta chamado Gabriel Malagrida. Então, olhando de perto a história de Zélio de Morais, vê-se que o elemento europeu é destacado e não só se dá mais importância a esse como os ditos elementos indígenas e africanos quase não são considerados se não como uma narrativa superficial. A suposta história que o nome Umbanda seria uma corruptela de Alabanda novamente evidencia esse destaque, digamos, judaico-cristão ou de algo que remeta Europa e sua ligação religiosa com o Oriente Médio, ao passo que Zélio de Morais trabalhava com 3 espíritos importantes — Caboclo das Sete Encruzilhadas, Pai Antônio e Orixá Mallet — e decidiu-se homenagear outra coisa que não é nem indígena e nem africana (por mais que a África Setentrional seja fortemente muçulmana não é desses povos que estamos falando vide que segundo Zélio de Morais e seus sucessores, Orixá Mallet era malaio e não norte-africano).

Ainda nas histórias oficiais, a umbanda do Caboclo Mirim e a umbanda Esotérica vão além, traçam a origem ancestral da religião num continente lendário e pensam o nome “umbanda” como uma corruptela de um nome oriental. Para além de somente destacar influências culturais não-africanas, desterritorializa totalmente a base ritual do culto porque faz um caminho para um lugar irrastreável e mais: destrói a etnia e o lugar social dos espíritos que baixam nos terreiros uma vez que esses não são de fato pretos, indígenas, homens e mulheres da rua, baianos, boiadeiros, ciganos etc porque são na verdade antigos moradores de Lemúria. Essa desterritorialização é tão forte para essas umbandas “ocultistas” que há um esforço literário para dizer quais eram as raças de Lemúria e quem seriam, na estrutura desse continente, os espíritos de cada linha de trabalho (Rivas Neto 1989: 164).

Macumba de raiz Bantu

Dicionário kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e corográfico. Assis Junior.

Há um registro de 1743 de uma mulher de Luanda, Luzia Pinta, que prestava “serviços espirituais” à população de Minas Gerais por meio de um ritual conhecido por Calundu. Esse culto consistia, basicamente, num processo de invocação de um espírito por meio de cantos e toques de atabaque, possessão (ou incorporação) do sacerdote por esse espírito e atendimento ao público feito pela entidade com ervas, raízes e oferendas (Daibert 2015: 13). Outras angolanas também praticavam esse rito e no calundu de Branca, outra africana, a base ritual era a mesma e contava também com mpemba, uma pedra branca usada nesse caso como uma espécia de giz que servia para desenhar coisas no corpo da sacerdotisa a fim de intensificar a ligação entre ela e os espíritos a serem manifestados em seu corpo (Daibert 2015: 15).

Os povos Bantu que habitavam a região que hoje compreendem Congo e Angola já tinham práticas espirituais muito bem consolidadas antes da diáspora forçada pelo período da escravização. Quero chamar atenção aqui para as práticas Bantu de culto aos ancestrais por meio da manifestação espiritual. Não de uma divindade ou de um ancestral muito longínquo mas de um espírito que fala, anda, fuma, bebe, reivindica por meio da fala direta, cura, confraterniza etc. Muitos desses povos cultivavam uma relação estreita com seus antepassados por meio de pessoas com certo tipo de especialidade em ouvir e manifestar esses mortos. Diversas necessidades eram operadas por meio dessa relação e não vou me arriscar aqui a divagar sobre elas para não cair num anacronismo ou romantização ou ainda numa cristianização dessas práticas centro-africanas. O que quero destacar é a relação entre essas pessoas e seus mortos por meio de um especialista espiritual que manifestava de maneira corpórea esses ancestrais para diversas finalidades entre elas cura e aconselhamento (Daibert 2015: 9–11).

Cosmograma Bakongo. Diekenga.

A imagem acima é um símbolo chamado Diekenga, ou Cosmograma Bakongo, utilizado pelos Kongo, um povo Bantu, em forma de cruz (anterior a chegada da cristianismo) que representa os ciclos do Sol, da vida e do tempo². Demonstra também a conexão entre o mundo dos vivos e dos ancestrais sendo, respectivamente, Nseke e Mpemba. Musoni está relacionado à concepção, Kala ao nascimento, Tukula ao ápice, o momento mais forte, e Luvemba à morte ou o pôr do Sol.

Do ponto mais baixo do círculo, à meia noite do trajeto solar, dá-se a concepção e vem Musoni, em amarelo, o tempo de germinar, do crescimento silencioso que antecede o nascimento. Após o nascimento acontece Kala, representado pela cor preta, tempo de crescimento, aprendizado. Com o amadurecimento vem Tukula, em vermelho, o ápice da liderança, da força, quando a linha vertical faz a conexão direta com o mundo dos ancestrais. Após o sol ao meio dia, se inicia o processo de decadência que inevitavelmente levará à morte física, Luvemba, representado pelo branco dos ossos, do pó, deste tempo de silêncio que antecede outro grande ciclo vital².

Nesse símbolo milenar achamos nomes familiares para o povo de umbanda, Mpemba e Kalunga. Mpemba, o mundo dos mortos, também é o nome dado à pedra que dona Branca usava em seu calundu, no séc. XVIII, para riscar algo em seu corpo a fim de intensificar a conexão com os espíritos. É o mesmo nome da pedra branca (pemba) que se usa nas giras de umbanda para evocar a energia das entidades e das divindades para que os trabalhos ocorram. Kalunga no cosmograma é a linha que divide o domínio dos vivos e dos mortos, o limite que o Sol transcende, pelo horizonte do oceano, num ciclo diário. Na umbanda, Calunga é o nome dado aos cemitérios e ao mar (Calunga Grande), entendidos como conexões entre os mundos físico e espiritual. Interessante pensar ainda que no cosmograma quando é meia-noite para os vivos é meio-dia para os mortos, o que representa o ápice de força no mundo dos ancestrais e para a umbanda a Meia-Noite, Hora Grande, é e sempre foi uma hora de poder. Após essas comparações é pertinente também acrescentar que “umbanda”, com essa grafia e pronúncia, é uma palavra do kimbundu, idioma Bantu, que significa “Magismo. Arte ou maneira de encantar, de curar: kubanga. Produção de atos mágicos” (Assis Junior 1923)³.

Como praticante de umbanda no século XXI a história de Zélio de Morais e do Caboclo-Padre me foi contada exaustivamente e após descobrir que existiam mulheres de origem Bantu, no século XVIII, incorporando espíritos para atendimento (pago ou não) com uso de cantos e atabaques para invocação e pemba para riscar desenhos de poder fica difícil acreditar que o que eu faço hoje nasceu em Niterói, dentro de uma casa kardecista, no ano de 1908. Fica mais difícil ainda quando Kalunga para os Bantu de Congo-Angola era a linha entre os mundos físico e espiritual e ainda: “umbanda” sendo uma palavra usada para designar práticas mágicas entre esse mesmo povo. Luzia Pinta praticava seu calundu em 1743, 114 anos antes da primeira publicação de Kardec e 165 anos antes de Zélio de Morais ter sua primeira manifestação mediúnica. Porém, mesmo com essas informações seria anacrônico e irresponsável dizer que o que Luzia Pinta, Branca e tantas outras africanas e africanos faziam era umbanda — e não era, era calundu (ou outra coisa). Apesar disso, fica evidente que existe uma territorialidade Bantu, especificamente Congo-Angola, nas umbandas. Com a finalidade de estender o mito fundador há ainda o argumento de que não foi Zélio que fundou o culto à caboclos, pretos-velhos, exus, pombagiras etc mas sim quem organizou a ritualística. E por isso gostaria de colocar aqui breves considerações sobre o Pai José Cabinda (1857), o feiticeiro Juca Rosa (1870), a Cabula (1890) e as diversas macumbas cariocas.

Um kimbanda Mbundu com todos seus fundamentos — Angola 1935⁴

Mato Sagrado do Pai José Cabinda

Em agosto de 1854, o Jornal do Comércio (RJ) noticiou sobre uma insurreição de escravizados que envolvia um grupo religioso liderado por Pai José Cabinda. Entre a escrita racista do jornalista podemos perceber algumas poucas coisas que podem ser relevantes para traçar heranças Bantu nas umbandas. A coluna fala sobre o ambiente em que pessoas livres e não-livres se reuniam para falar de provavelmente muitas coisas mas uma delas (a noticiada) era a liberdade. Esse local era um tipo de templo⁶ onde se fazia uma reunião religiosa a fim de, nesse caso, iniciar um novo membro e eu gostaria de chamar atenção para os objetos que haviam no altar e os nomes dos membros ilustres.

[…] ali coloca com todo respeito uma luz, uma garrafa de aguardente, uma tigela com diversas raízes, uma figura de pau, a meio corpo, sem braços […] e outra de cera com […] o umbigo formado por um pedaço de vidro. Colocam também ali uma raiz grande, a que dão o nome de “Guiné encantado”, um corno de boi, um patuá envolto de casca de lagarto, dois Santo Antônio de nó de pinho […]” (Jornal do Comércio RJ 1854).

O grão-mestre da ordem é o célebre José Cabinda, os irmãos não o conhecem senão pelo nome “Pai Gavião” […]. Há na ordem diversos graus. Os irmãos que chegam ao grau de encantados tomam um nome que a eles dá o grão-mestre. Os nomes dos encantados são entre outros os seguintes: “Grande Apaga-Fogo”, “Rompe-Ferro”, “Gaviãozinho”, “Quinuano”, “Sete Pombas”, “Quatro Cantos” etc. (Jornal do Comércio RJ 1854).

Os elementos sagrados se parecem com as ferramentas usados pelo feiticeiro Bantu da última foto. Um acúmulo de instrumentos num só lugar e sendo eles corno de boi, uma série de ervas e raízes e figuras feitas em madeira e cera. As estatuetas são particularmente interessantes pois são elementos fortemente centro-africanos: o Santo Antônio de nó de pinho e uma figura com o umbigo aberto selado com um pedaço de vidro. Esse segundo parecendo muito um Nkisi (não as divindades) que é uma espécie de amuleto que para ser feito envolve um tipo de especialidade mágica capaz de ter algum efeito de acordo com sua criação, seus fundamentos geralmente são colocados na parte da barriga/umbigo e selados com algum material. Os nomes, por sua vez, já se parecem com algo umbandista pois lembram os nomes das entidades que chegam nas giras. Abro aqui uma observação sobre o fato de José Cabinda ser conhecido também como “Pai Gavião”. Na coluna relata-se que o sacerdote entra num transe, não seria estranho se Pai Gavião fosse na verdade um espírito que se manifestasse em José Cabinda e esses nomes dos “encantados” fossem das suas respectivas entidades. De toda forma, como não há como provar isso, me contento em chamar atenção ao fato de que não seria nada estranho encontrar alguma entidade de umbanda hoje com quaisquer desses nomes. Aqui temos então um relato de uma manifestação religiosa que parece ter base Bantu com nomes que lembram os guias de umbanda.

Estatueta Nkisi

O Feiticeiro Juca Rosa

Juca Rosa foi um famoso sacerdote que viveu no Rio de Janeiro na segunda metade do séc. XIX. Era conhecido por ser um poderoso feiticeiro e angariava muitos clientes dos grupos mais ricos da época. O que quero destacar aqui é um relato de uma das “brincadeiras” que ele promovia, esse era o nome de algumas de suas sessões religiosas que envolviam atendimento e festa.

[…] a cerimônia […] consistia em reunir-se no lugar uma porção de homens e mulheres […] em uma sala onde existe um altar tão bem armado como se fosse uma capelinha e onde um indivíduo toca um instrumento de pau chamado por eles “macumba” ao som do qual as pessoas que querem entoam cantigas em língua africana e dançam uma espécia de fado no fim do qual Rosa que estava no meio dos dançantes caía como morto e era então que se dizia estar com espírito na cabeça que então era levado naquele estado para dentro de um quarto onde as pessoas que denominava suas filhas o iam consultar sobre as ocorrências de sua vida; (Sampaio 2000: 213)

Aqui aparece algo familiar à umbanda. Um sacerdote dança ao som de tipos de cantos e entra em transe em decorrência disso. Depois é auxiliado por suas filhas em um quarto onde dá consulta. É muito importante se atentar à essa forma de atendimento: consulta em transe. Não há um sistema divinatório em uso, o próprio espírito fala. É ele quem pergunta, conversa e receita alguma coisa, por meio da fala direta. É importante evidenciar isso porque delimita um espaço que estamos percorrendo, esse onde a umbanda se encontra — o do atendimento por meio de um especialista espiritual em transe onde é o próprio espírito que fala de forma direta usando o corpo do comunicante. Os nomes dos espíritos manifestados em Juca Rosa também são dignos de atenção tais como Pai Quimbombo, Santo Zuza e Pai Vencedor (Sampaio 2009).

Cabula

A Cabula é uma religião tradicionalmente praticada no Espírito Santo que também envolve uma sessão de culto e chamada de espíritos por meio de um ritual com cantos e também pemba e defumação (não sei dizer se tinha ou não esses dois elementos nos cultos de José Cabinda e Juca Rosa, tendo a crer que sim, mas como não tenho certeza não os destaquei anteriormente). As sessões são chamadas de “mesas”, o dirigente de “Embanda” e a reunião dos praticantes de “Engira”. As mesas são feitas no meio da mata, embaixo de uma grande árvore onde é montada uma fogueira e um altar. Seu primeiro registro é do final do séc. XIX pelos escritos do Bispo Dom João Corrêa Nery (Trindade 2000: 69).

As velas são denominadas estereiras e são acesas iniciando-se pelo leste, em honra do mar (calunga grande), depois para o oeste, norte e sul. Logo após a abertura do ritual, o Embanda, ao som dos nimbus (pontos cantados) e palmas compassadas, se contorce, revira os olhos, bate no peito com as mãos fechadas até soltar um grito estridente. O cambone traz então um copo com vinho e uma raiz. O Embanda mastiga a raiz e bebe o vinho. Serve o fumo do incenso, queimado […] em um vaso e entoa o segundo nimbu. […] prossegue-se […] a parte principal das reuniões. Entoam um nimbu apropriado e o Embanda dança, com grandes gestos e trejeitos para que os espíritos se apoderem de todos […]. Os espíritos que baixam nos adeptos identificam-se como Tatá Guerreiro, Tatá Flor Carunga, Tatá Rompe-Serra, Tatá Rompe-Ponte etc (Trindade 2000: 70–71).

Aqui vemos novamente elementos centro-africanos e um ritual que lembra muito a umbanda. Uma abertura com cantos seguida de uma defumação cuja tem um canto específico e finalizada com a incorporação do dirigente. Aqui se vê também termos como “cambone” e “calunga”. Como umbandista não pude deixar de perceber também a corporalidade da manifestação do espírito no Embanda que lembra muito a incorporação de um caboclo. As batidas fortes no peito seguidas de um brado potente. Os nomes também seguem uma lógica parecida com a umbanda, um título seguido de um nome simbólico, “Tatá Guerreiro”, “Tatá Rompe-Serra” (inclusive, no meu terreiro manifesta um caboclo com esse nome: “Rompe-Serra”) que igualmente se vê nas sessões de Juca Rosa e José Cabinda. Vale também aqui acrescentar que “Embanda” vem de imbanda que é o plural de kimbanda cuja em kimbundu significa especialista de magia.

Macumbas Cariocas*

Macumba é um termo genérico que foi utilizado no início do séc. XX para designar uma série de manifestações religiosas na cidade do Rio de Janeiro. Não existia exatamente uma ritualística comum entre todas elas, apesar de que se assemelhavam muito, além da manifestação espiritual para uma série de coisas. A origem do nome pode vir de dois lugares. Primeiro de um instrumento musical parecido com um reco-reco ao qual se chamava macumba e que se tocava nessas sessões. Segundo do kimbundo, onde cumba é um termo usado para falar de pessoas muito importantes e ma sendo um prefixo de coletividade. Macumba, portanto, “reunião dos importantes” em tradução livre.

Os jornais cariocas na primeira metade do séc. XX eram lotados de relatos sobre as macumbas, desde séries de colunas até denúncias ou classificados. O famoso João do Rio protagonizou a série “O Falso Spiritismo” na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 1908. O objetivo dessa coluna era denunciar o “baixo espiritismo”, todas aquelas casas que se chamavam espíritas mas não seguiam Kardec. Esse termo, evidente, também carrega racismo sendo que muitas vezes esse baixo espiritismo era uma macumba. Mas em uma dessas reportagens se tem manifestações que podemos realmente relacionar com entidades de umbanda. Numa disposição que se parece muito mais com uma casa espírita — com uma série de falas introdutórias e uma mesa onde os médiuns se sentam para dar passagem aos espíritos — há por meio de duas médiuns manifestações dos “feiticeiro Dias” e “Pai João”. O primeiro, logo após o tranco da incorporação, solta uma grande gargalhada e se identifica. O dirigente então o saúda e o pede para resolver uma questão de segurança espiritual no portão da casa. Feiticeiro Dias apresenta elementos que lembram exu. Pai João por sua vez é um homem africano, que fala um português fortemente caracterizado por seu idioma original e ainda forma frases cantadas. Congrega elementos de um preto-velho. A situação porém não é em um terreiro, apesar disso é em um “baixo espiritismo”. Importante dizer que essa coluna é publicada em 25 de janeiro de 1908, 9 meses antes de Zélio incorporar o Caboclo das Sete Encruzilhadas/Padre Gabriel Malagrida.

Em 4 de setembro de 1923 (Jornal Correio da Manhã) e 23 de abril de 1924 (Jornal A Noite) são publicadas reportagens sobre o terreiro de macumba do Pai Quintinho, ambas sobre festas para São Jorge. A primeira coluna se propõe a ser explicativa e investigativa sobre o ritual que acontecia naquela casa e se tem registros de cantos com o nome “umbanda”, de manifestações de espíritos para consulta, do nome do chefe ser “pae de santo” e ainda uma gravura de um altar que parece um gongá e outra retratando uma defumação com algo que parece um turíbulo ou um vaso. Se canta para o “general de umbanda”. Na segunda reportagem se fala da “macumba” do Pai Quintinho e não se chama aquilo de umbanda apesar de que os pontos cantados também referenciarem umbanda. A primeira reportagem diz ainda que a “linha de umbanda” é uma religião dos povos de Congo e Angola. Em 1924, no Jornal do Brasil, Benjamim Costallat publica “Na noite do subúrbio” que procura falar sobre as macumbas tocadas no Rio de Janeiro e fala sobre o terreiro do Caboclo Curador que manifestava para curar as pessoas por meio das baforadas do seu charuto. Nos pontos dessa casa novamente se vê cantando para “general de umbanda” e para os “caboclos do povo de umbanda”. Em 1916 há um classificado sobre uma “casa de umbanda”, em 1913 uma reportagem sobre “os loucos” que tocavam macumba e se diziam pertencer à “lei de umbanda”. O Jornal do Brasil em 1928 fez duas reportagens sobre “magia negra” onde em uma se denuncia um culto com muitos símbolos e apetrechos onde os cantos falam de “São Jorge, Rei de Umbanda” e a outra sobre uma “macumba improvisada” na casa de uma pessoa que ao ser questionada sobre o nome da sua prática diz que é “da religião de umbanda”. A maioria dessas macumbas cantavam sobre umbanda, os caboclos eram de umbanda, o povo era de umbanda, São Jorge era general e rei de umbanda. Em 7 de maio de 1924, Leal de Souza — o mesmo que publica em 1932 “O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda” (livro que fundamenta os ritos de Zélio de Morais) — visita pela primeira vez o Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade (fundado por Zélio e Seu Sete Encruzilhadas) e fala que aquilo é um “centro espírita”. Se relata uma sessão de mesa, uma desobsessão, não se fala de caboclos ou pretos-velhos e nem aparece a palavra “umbanda” ou “macumba”.

Jornal Correio da Manhã (RJ) — 1916
Pontos riscados de cabula (Trindade 2000)

Considerações Finais

A narrativa fundadora de umbanda não se sustenta se analisarmos o conjunto que envolve diversas práticas religiosas no sudeste que apresentam fortes características centro-africanas dos antigos povos do território que hoje compreende Congo e Angola. O objetivo desse texto é ampliar a discussão sobre as verdadeiras heranças da umbanda não a procura de uma espécie de purismo mas para evidenciar que a base do nosso ritual não se resume ao mito da democracia racial ou a uma espécie de acordo superficial entre “as três raças” — não só não se resume, não se trata disso. Percorrer um caminho (digo um porque essa trajetória histórica é somente uma entre muitas possíveis) por entre os cultos criados/reinventados/influenciados pelos Bantu revela que muitos elementos presentes na umbanda são os mesmos desses (pelo menos em estética) ou bastante parecidos. O movimento de ir nos calundus de Luzia Pinta e Branca, nas feitiçarias de José Cabinda e Juca Rosa, na Cabula e nas macumbas cariocas não é para dizer que todos eles faziam umbanda porque isso seria, de novo, anacrônico e irresponsável cientificamente mas é pra mostrar que o que esses cultos afrobrasileiros faziam se parece muito com o que nós fazemos hoje e para além — se parece mais com as umbandas modernas (ao menos as que eu tenho contato) do que com o que o próprio Zélio fazia. Os jornais, para além de serem usados como registro de algo, servem também para evidenciar o lugar que algo pertencia levando em consideração o vocabulário usado. As notícias sobre as diversas macumbas cariocas sempre eram inundadas de racismo e desdém, deixava-se claro que aquilo, para a sociedade, era degenerado, primitivo ou maligno. Mas quando Leal de Souza vai no Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade em 1924 ele não diz que é “macumba”, ele não noticia nenhum caboclo ou preto-velho, pelo contrário, descreve uma sessão de mesa (aqui literalmente uma mesa onde os médiuns se sentam para manifestar e não “mesa” como sinônimo de “cerimônia”) para “desobsessão” numa “casa espírita”. Ele até desconfia que lá tem alguns elementos que talvez pareçam com coisas que ele viu nas macumbas mas não tem certeza.

O ato de abrir uma cerimônia por meio de um ritual que envolve pontos riscados com pemba, defumação, saudação de um altar que contém diversas imagens e elementos de todos os tipos (espíritos, santos, divindades, peles de animais, plantas, velas etc), incorporação do “chefe” seguida da incorporação dos filhos e a prática de consulta falada já existe antes de Zélio de Morais e com um estética muito mais umbandista do que a do próprio Zélio. Também outros cultos cariocas tinham rituais muitos semelhantes no mesmo período que a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade estava se consolidando. A própria palavra “umbanda” já existia, antes do Orixá Mallet. Antes da Lemúria de Benjamin Figueiredo, Matta e Silva e Rivas Netto. Até as palavras e seus significados aproximados/reinventados: kalunga, mpemba, abrir, cambono, ponto cantado/riscado, caboclo, umbanda. Podemos adicionar também a esse arsenal de palavras os nomes das entidades que sempre envolve um nome simbólico muitas vezes também antecedido por um título: Pai Vencedor, Pai Quimbombo, Tata Rompe-Mato, Tata Rompe-Serra, Tata Guerreiro, Sete-Pombas, Rompe-Ferro, Grande Apaga-Fogo, Quatro Cantos. Antes de acabar o texto gostaria ainda de fazer um pequeno devaneio no embalo das palavras do kimbundu. É sabido que “pombagira” é uma corruptela de Pambu Njila, o nome do Nkisi dos Caminhos. Njila significa “caminho, estrada, rota, rua”³. Fico pensando se na lógica da invenção da palavra “pombagira”, o nome das nossas cerimônias não signifique o ato de abrir nossos caminhos — vamos abrir a nossa “gira”. Ainda, quando as entidades dizem para “girar no pensamento” do consulente, ir no pesamento da pessoa. Njila, Gira.

O cenário exposto no texto não é para dizer que os calundus das angolanas e as feitiçarias e macumbas cariocas eram proto-umbandas ou que esses cultos viraram umbandas. Pelo contrário, esses cultos eram completos em si mesmos. O objetivo aqui é dizer que a territorialidade afrobrasileira presente nesses cultos é a mesma da umbanda, e evidenciar isso é chamar atenção para o racismo das histórias oficiais e para o apagamento da herança Bantu no nosso ritual. A umbanda é religião contemporânea que foi/é expostas às influências de sua própria época e entender isso é entender que estamos sim expostos ao kardecismo ou qualquer outra coisa, mas para entender essas influências com responsabilidade é preciso saber da trajetória das manifestações religiosas Congo-Angola no Brasil. Não se incorpora espírito na umbanda porque um médium foi expulso de uma mesa kardecista em 1908. Se incorpora espírito na umbanda porque diversas pessoas Bantu ou influenciadas pelos Bantu fazem isso no Brasil desde o séc. XVIII. Sabendo disso é possível pensar que Zélio foi mais um entre as muitas religiões do Rio e que poderia ser também herdeiro em algum nível dessas heranças afrodiaspóricas. E se foi herdeiro, a “macumba” que ele fazia era tão embranquecida e influenciada pelo kardecismo e pelo catolicismo que se confundia com espiritismo. Disso podemos pensar que essa “macumba” ou umbanda, porque como vimos ao longo do séc. XX esses nomes eram quase sinônimos, de Zélio foi mais aceita pela sociedade a ponto de não ser marginalizada pelos jornais e até ser consagrada como origem da religião justamente por não se referenciar nesse lugar afrobrasileiro. O que foi consagrado como origem da umbanda parece ser justamente aquilo que menos parecia com umbanda e os rumos da religião pós-sucesso de Zélio de Morais pode ser pensado como os processos de embranquecimento maciço do culto.

Ainda assim, mesmo após o embranquecimento das macumbas ao longo do século XX e XXI, nós continuamos saudando a Calunga que divide o mundo dos vivos e dos espíritos, continuamos riscando símbolos com pemba, abrindo os nossos caminhos, reverenciando a Meia-Noite e a usando como momento de poder e também incorporando os Rompe-Serras, Rompe-Matos, os Pais Joões, Antônios e toda sorte de espíritos que baixam nos terreiros do Brasil. Graças a Nzambi os símbolos continuam aqui com toda sua potência e essência e da mesma forma que foram dessignificados podemos ressignifica-los. Umbanda pode ser também “manifestação do espírito para a prática da caridade”⁹ mas antes disso é “arte ou maneira de encantar, de curar. Produção de atos mágicos”, uma prática com diversas influências porém com predominância ritual Bantu. Não brasileira, somente, como o limite do apagamento da história africana e da consagração do mito da democracia racial. Mas sim, afrobrasileira.

¹https://www.youtube.com/watch?v=D0N87sIimwc
²http://www.edgardigital.ufba.br/?p=6464
³https://archive.org/details/dicionriokimbu00assiuoft/mode/2up
https://www.instagram.com/p/B1cM06bHaqk/
https://drive.google.com/file/d/1NnRdBruTQkv9QSZabyDV_WFcsX3s5Qw4/view
Não me arrisco a dizer que era um terreiro, um barracão, ou algo assim porque a escrita carregada de racismo para além de não reconhecer legitimidade e humanidade naquela prática também carece de referências para explicar o que de fato acontecia recorrendo a termos como “maçonaria”, “ordem” (no sentido de organização) e “grão-mestre”.
https://revistasenso.com.br/umbanda-e-kimbanda/chega-de-estultice-estudo-etimologico-das-palavras-umbanda-e-kimbanda-parte-2/
https://drive.google.com/file/d/1DArJTAWeL_zFT7fBRM-N1vtqc1byC5_g/view
Definição de umbanda dada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas.

Assis Junior, Antonio. Dicionário kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e corográfico.

DAIBERT, Robert. A religião dos bantos: novas leituras sobre o calundu no Brasil colonial. Estud. hist. (Rio J.) vol.28 no.55 Rio de Janeiro jan./jun. 2015.

RIVAS NETO, Francisco. 1989. Umbanda: A Proto-Síntese Cósmica. São Paulo: Editora Pensamento.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. A História do feiticeiro Juca Rosa: Cultural e relações sociais no Rio de Janeiro Imperial. 275f. Tese de doutorado — UNICAMP, Campinas, 2000.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Santo Zuza e seus Favores: crenças e relações sociais no Rio de Janeiro do XIX. Jornal de Resenhas, Rio de Janeiro 2010.

SIMAS, Luiz Antônio. O país de Sete Encruzilhadas. Revista Caju. 2018.

TRINDADE, Diamantino Fernandes. 2000. História da umbanda no Brasil. Editora do Conhecimento.

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Lucena Fiorotti
Lucena Fiorotti

Written by Lucena Fiorotti

Rodante de Umbanda, Iwayo de Candomblé. Mestrando em Ciências Sociais.

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